Desmarginação

04 abril 2016

"A 31 de Dezembro de 1959 Lila teve o seu primeiro episódio de desmarginação. O termo não é meu, foi ela que sempre o usou, forçando o significado corrente da palavra. Dizia que nessas alturas as margens das pessoas e das coisas se dissolviam de repente. Quando, naquela noite, no alto do terraço onde estávamos a festejar a chegada de 1960, foi acometida bruscamente por uma sensação desse tipo, assustou-se e guardou o caso para si, ainda incapaz de lhe dar nome. Só anos depois, numa noite de Novembro de 1980 - tínhamos ambas trinta e cinco anos, éramos casadas, mães de filhos -, me contou em pormenor o que lhe acontecera naquela ocasião, e que ainda lhe acontecia, e pela primeira vez recorreu a esse vocábulo.

Estávamos no exterior, no alto de um dos prédios do bairro. Apesar de fazer muito frio, usávamos vestidos leves e decotados para parecermos bonitas. Olhávamos para os homens, que estavam alegres, agressivos, figuras escuras excitadas pela festa, pela comida, pelo espumante. Acendiam as mechas dos fogos de artifício para festejar o ano novo, ritual a que Lila, como depois contarei, dera a sua colaboração, e agora olhava com satisfação as linhas de fogo no céu. Mas de repente - disse-me - , apesar do frio começou a cobrir-se de suor. Pareceu-lhe que todos gritavam muito alto e se movimentavam muito depressa. Essa sensação foi acompanhada de náusea e ela teva a impressão de que alguma coisa material, presente em seu redor e em redor de todos e de tudo desde sempre, mas imperceptível, estava a destruir os contornos das pessoas e das coisas e a revelar-se.

O coração batia-lhe descontroladamente. Começou a sentir aversão pelos gritos que saíam das gargantas de todos aqueles que circulavam pelo terraço no meio dos fumos, no meio dos rebentamentos, como se aqueles sons obdecessem a leis novas e desonhecidas. A náusea cresceu, o dialecto deixou de lhe ser familiar, tornara-se-lhe insuportável o modo como as nossas gargantas húmidas banhavam as palavras no líquido da saliva. Uma sensação de repugnância apodera-se de todos os corpos em movimento, da sua estrutura óssea, do frenesim com que se agitavam. Como somos mal feitos, pensou ela, como somos insuficientes. Os ombros largos, os braços, as pernas, as orelhas, os narizes, os olhos, pareciam-lhe atributos de seres monstruosos, caídos de qualquer recanto do céu negro. E o asco, sabe-se lá porquê, concentrava-se sobretudo no corpo do seu irmão Rino, a pessoa mais familiar, a pessoa que ela mais amava.

Parecia-lhe que o via pela primeira vez tal como ele era, uma forma animal atarracada, membruda, a que mais geitava, a mais feroz, a mais voraz, a mais mesquinha. O tumulto do coração dominava-a, sentia-se sufocar. Fumo a mais, mau cheiro a mais, demasiado relampejar de fogos na geada.Lila tentara acalmar-se, dissera a si mesma: tenho de agarrar o caudal que está a atravessar-me e atirá-lo para fora de mim. Mas nesse instante ouviu , entre os gritos de alegria, uma espécie de última detonação, e passou-lhe qualquer coisa ao lado, como que o sopro de um bater de asa. Alguém estava a disparar, já não foguetes e morteiros, mas tiros de pistola. O seu irmão Rino gritava obscenidades insuportáveis na direcçãodos clarões amarelados.

Na altura em que me fez essa descrição, Lila disse também que aquela coisa a que chamava desmarginação, embora a tivesse atingido de forma clara só daquela vez, não era totalmente nova para ela. Por exemplo, já tivera muitas vezes a sensação de entrar, durante fracções de segundos, numa pessoa ou numa coisa, ou num número, ou numa sílaba, violando-lhe os contornos. E no dia em que o pai a atirara pela janela, tivera a certeza absoluta, enquanto voava em direcção ao asfalto, de que pequenos animais vermelhados, muito amigáveis, estavam a dissolver a composição da estrada, transformando-a numa matéria lisa e macia. Mas naquela noite de fim de ano apercebera-se pela primeira vez da existência de entidades desconhecidas, que quebravam o contorno habitual do mundo, deixando ver a sua natureza assustadora. E isso tinha-a transtornado."

A Amiga Genial, de Elena Ferrante 
Editora Relógio D' Água

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Quase todos os meus livros preferidos estão de alguma forma ligados, não apenas e obviamente aos autores, mas também às pessoas que mos ofereceram ou aconselharam e aos momentos especiais em que os li. Este é mais um que ficará para sempre associado a alguém que já entrou na minha vida.

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A última fotografia é da Diane e tem como título "Comme je la vois".

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